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Assinado pelo estilista e artesão e artista textil Gustavo Silvestre, o Ponto Firme quebrou a leveza e suavidade das formas e cores outonais da Água de Coco (que apresentou a coleção momentos antes), trazendo para a passarela do desfile internacional de moda a realidade do cárcere brasileiro
Muito foi visto de novidade e beleza na São Paulo Fashion Week, que aconteceu nessa semana, entre os dias 21 e 26, mas foi a abordagem sobre uma realidade social que ganhou os holofotes e os cadernos da semana de moda, sendo comentada durante todo o evento. Essa discussão foi provocada pelo Projeto Ponto Firme, que trouxe peças construídas em crochê feitas por 20 detentos do presídio Adriano Marrey, em Guarulhos, SP.
As peças foram apresentadas em desfile específico para o projeto, já no primeiro dia da SPFW, que esse ano foi realizado no Pavilhão das Culturas Brasileiras, do Parque do Ibirapuera. E isso aconteceu depois do desfile da Água de Coco, grife que dita as tendências da moda para, animado pela cantora Anita.
O Ponto Firme, projeto assinado pelo estilista e artesão Gustavo Silvestre, 39 anos, quebrou a leveza e suavidade das formas e cores outonais da Água de Coco, trazendo para a passarela a realidade do cárcere brasileiro. As peças em crochê produzidas pelos detentos foram apresentadas em ambiente criado para impactar: linhas e lãs misturadas em cores e formas simularam as várias realidades que habitam as celas da cadeia e a trilha sonora pesada remeteu à tensão do ambiente onde as peças foram criadas. O desfile como um todo causou bastante impacto e comoção.
O primeiro look mostrou a pouca, mas notada entrada de sol no presídio, apesar de retratar o uniforme dos detentos, vestimenta que conceitualmente já não tem multiplicidade de cores e maleabilidade, trouxe leveza na camiseta branca confeccionada em cuidadosos pequenos pontos de crochê sobre calça bege.
Peças masculinas em cores frias e modelagens mais criativas vieram em seguida, sempre com detalhes em croché. Mochilas e toucas traziam aplicações com escritas Racionais.
Para derrubar o paradigma de que não há cores nos presídios, o Projeto Ponto Firme trouxe uma grande mistura de tons, a maioria forte – amarelo ovo, vermelho, anil e laranja. Talvez essas cores sejam percebidas pelos detentos quando das visitas dos familiares e amigos, quem sabe?
As peças mais pesadas para dias mais frios, como casacos, túnicas bem soltas vieram repletas de cores em desenhos geométricos, confeccionadas em tecidos como algodão, sarja e flanela bordadas. Remontando ao lúdico, pequenos bonecos e bichinhos (todos confeccionados em crochês) foram bordados ou aplicados.
Quem é o pai do Projeto Ponto Firme?
Gustavo Silvestre é estilista e artesão. Estudou moda no Brasil e fez cursos técnicos na Itália. À Revista Cláudia, ele contou que se deu conta de como a indústria têxtil agride o meio ambiente e o mal estar provocado por essa visão o levou a desenvolver trabalhos artesanais. Foi dessa forma que começou a trabalhar com crochê profissionalmente.
Num bate-papo com o site www.mulherreal.com, o estilista complementou que trabalhar com crochê lhe deu nova perspectiva e mudou o seu jeito de produzir e costurar. “Eu já não não dependia mais de tecidos, tintas, ferros de passar, máquinas de costura e tudo o que cerca essa indústria da moda que polui e destrói tanto”, diz. “Eu só precisava de agulha e linha. Nem de energia elétrica eu dependo mais”, diz Silvestre, aliviado.
O estilista, veterano no mundo da moda, passou a ensinar a técnica do crochê no Sesc, onde é professor. “Falo para os meus alunos que é como um jogo de video game – você passa de uma “fase” (desafio de nova técnica) e logo quer passar para outra (desafio maior de aplicar a técnica aprendida ou aprender outra mais complexa)”, conta.
O Projeto Ponto Firme nasceu em 2015 já com a proposta específica de levar aulas de crochê para os presos da Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos (SP). Ele foi convidado pela Pastoral carcerária porque já ensinava crochê, inclusive para homens.
Inicialmente, os detentos aprenderam a fazer tapetes e uma exposição de tapeçaria foi realizada no ano seguinte.
Logo a moda bateu à porta também do Ponto Firme. Gustavo levava materiais de pesquisa aos alunos da penitenciária e foi nesses materiais que chamou-lhes a atenção peças de vestuário que pediam orientação a Gustavo para desenvolver. Aos poucos, migraram espontaneamente da tapeçaria para a moda. “Quando dei conta já tinha uma arara cheia de roupas e a questão era: o que faríamos com aquilo: Não poderíamos colocar as roupas nas paredes para fazer uma exposição como fizemos a de tapeçaria. Realizamos, então, um desfile interno”, relata.
A participação do projeto na SPFW não era planejada pelo estilista quando começou o projeto ou quando o apresentou a Paulo Borges, criador e organizador da semana de moda. “Trabalhei muito na SPFW e trabalhei com Paulo Borges. Quando apresentei o Ponto Firme ele ficou apaixonado”, diz.
Inicialmente, o projeto era desenvolvido em parceria com a loja de costura Novelaria, que oferece vários cursos manuais em São Paulo. Depois, o projeto teve adesão de outros profissionais e empresas. Hoje, o Ponto firme tem como parceiros Linhas Círculo e Melissa Calçados.
Próximos passos do Projeto Ponto Firme
A edição 45 da SPFW acabou, mas as próximas devem trazer mais da criação dos presos. É isso mesmo, o Projeto Ponto Firme continua e vai manter viva a capacidade criativa dos alunos. As futuras criações devem ser apresentadas na edição 47 da semana internacional da moda.
Mais urgente que isso, entretanto, é a criação de uma cooperativa para os alunos colocados em liberdade. “É importante criar a cooperativa para que os alunos tenham onde trabalhar”, diz o estilista. Segundo ele, dados da Secretaria de Administração Penitenciária mostram que 75% dos presos colocados em liberdade retornam para o presídio em até 100 dias depois da soltura.
A edição de uma publicação também está nos planos de Silvestre. Provavelmente será uma revista com os modelos criados pelos alunos do presídio, moldes e passo a passo do confecção das peças.
Ao longo da semana abordaremos o que de mais interessante as mais de 20 grifes apresentaram na SPFW com textos, fotos e vídeos dos desfiles. Acompanhe!